12 fevereiro, 2010

Tríduo Momesco

Antigamente, os jornais chamavam o carnaval de "tríduo momesco". Não é genial? "Tríduo momesco", três dias de folia, delírios de Momo. E o tríduo momesco começava bem antes do carnaval. Começava como uma frente quente no ar, com sons de marchinhas que surgiam no rádio, com os flamboyants sangrando no verão, com as cigarras cantando (onde estão as cigarras nos fins de tarde?) naqueles verões que prometiam amores infinitos.

O carnaval começava como o prenúncio de uma tempestade feliz, o carnaval para mim não era nem orgiástico nem sexy; era a esperança de realizar alguma façanha, alguma aventura que nunca ousara, que ia mudar a minha vida de tímido e bobo, algo de milagroso, uma paixão realizada, um rosto infinitamente belo que eu beijaria entre confetes dourados e serpentinas sensuais, um extraordinário feito sexual na madrugada ou até mesmo um dramático desencontro, como no famoso conto de João do Rio,
O Bebê de Tarlatana.

Para mim, o carnaval sempre teve um ar etéreo, impalpável, sempre foi uma ventania de sons, uma debandada de perfumes, uma alegria febril que só os outros tinham e que eu nunca entendia direito, deslocado, pensando: "Por que estão tão felizes?"

Eu gostava mesmo era de sa
ir na rua para ver os blocos de sujos.


Muitos anos mais tarde, entendi a razão profunda dos blocos de sujos quando vi um genial filme de Jean Rouch, um filme chamado
Les Maîtres Fous. Nele, os desgraçados da África do Sul, negros do "apartheid" iam de noite para a floresta fazer um ritual meio vodu de exorcismo dos dominadores brancos. Uma camisola suja vestia um negro enorme, representando a "mulher do governador", os passos de ganso dos guardas do palácio viravam uma dança caricatural pelos negros esmagados de solidão, um grande ovo de avestruz era espatifado na cabeça de um outro negrão, como o chapéu coroado de amarelo dos generais brancos. Esta representação escrachada da vida social, esta crítica travestida nos oprimidos, esta mímica de si mesmos esculhambados em seu dia-a-dia, isso fica muito além do narcisismo que tomou conta de tudo no carnaval de hoje.

Nas ruas remotas, está a origem preciosa do carnaval profundo, a festa maluca que o povo dá a si mesmo. Lá estão os desesperados, os famintos de comida e de amor, lá estão os excluídos da festa oficial. Nas ruas, estão os anjos de cara suja, os blocos das escrotas, os blocos dos vagabundos, dos bêbados ornamentais, da crioulada dura. Esses molambos e pirados jogam sobre nós a beleza da lama, detêm o enredo de séculos de exclusão; na verdade, o samba-enredo mais antigo da humanidade: "Tragédia milenar dos desgraçados".

Ali está a muda revolta não entendida do trabalho desumano, da escravidão dos baixíssimos salários, o prazer de escrachar-se e escrachar a beleza óbvia da elegância e do brilho. Nesta inversão da beleza limpa, há a invasão de uma poesia "grotesca", que atravessa os séculos, desde Brueghel, Bosch, Rabelais até Goya e Ensor e acaba nas caretas coloridas das máscaras.

Nas ruas sujas estão as raças brasileiras ensopadas, num casamento grupal doído, dando à luz um bebê mestiço gargalhante, que nos lembra que, sob o brilho das massas de mercado, sobra uma santidade essencial misteriosa.


E viva mais um tríduo momesco!

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