Na Europa, países derrubam restrições e tratam a covid como uma doença comum. No Brasil, casos em queda e máscaras em alta.
REVISTA OESTE
Por: Artur Piva e Paula Leal
A Inglaterra se tornou o país mais livre da Europa. Há
algumas semanas, os ingleses experimentam a vida livres de máscaras,
passaportes sanitários ou restrições de circulação. Até os contaminados pelo
coronavírus foram dispensados de fazer isolamento social.
O governo do primeiro-ministro, Boris Johnson, pôs em
prática o plano “Viver com covid”, antecipando o desfecho dado como certo pela
comunidade científica: a covid-19 se tornará uma endemia, ou seja, uma doença
comum, como é a gripe.
A decisão da Inglaterra é acompanhada por outros países que
já entenderam, nessa altura do campeonato, que a apresentação de passaportes de
vacina e lockdowns rigorosos são incapazes de conter o curso da doença. Com o
mundo adentrando no terceiro ano da pandemia, algumas “verdades incontestáveis”
simplesmente perderam a “validade científica”.
Não dá para seguir em um embate permanente contra a doença,
tratando a liberdade como sinônimo de morte e as restrições infinitas como
corretas e saudáveis. Parte do planeta já despertou para a realidade.
Ao menos 20 países já anunciaram a flexibilização de regras
no combate à pandemia. A Espanha, no mês passado, propôs classificar a covid-19
como uma doença endêmica. Coube ao primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez,
fazer o anúncio: “A ciência nos deu a resposta para que consigamos nos
proteger”, afirmou Sánchez, em entrevista à rádio Cadena Ser. “Nós temos de
começar a avaliar a evolução da covid-19 de uma pandemia para uma doença
endêmica.” Desde 29 de janeiro, a Espanha voltou a permitir que as pessoas
frequentem bares e restaurantes sem restrições. Nem a comprovação de vacinação
é necessária.
A Suíça suspendeu a maioria das medidas restritivas contra a
covid-19. O uso de máscaras e a apresentação do certificado de vacinação não serão
mais exigidos para entrar em lojas, restaurantes, cinemas e teatros. Não há
mais restrições para reuniões privadas nem a necessidade de obter licença para
grandes eventos.
A Dinamarca liberou geral e derrubou todas as proibições.
“Estamos prontos para sair da sombra do coronavírus, nos despedimos das
restrições e saudamos a vida que tínhamos antes”, disse a primeira-ministra,
Mette Frederiksen.
A Polônia vai remover a maioria das restrições à covid-19 a
partir de 1º de março. Na Itália, o uso de máscaras ao ar livre tornou-se
facultativo. E Israel derrubou a exigência do passaporte sanitário. O
primeiro-ministro, Naftali Bennett, justificou a medida afirmando que a onda de
contágio da Ômicron está diminuindo rapidamente. O país, que já está na quarta dose
de vacina, quer combater o coronavírus por meio da vacinação, sem “bloquear” a
economia.
Combinação ideal para
acelerar o fim da pandemia
Depois da chegada da Ômicron, a mais transmissível das
variantes do coronavírus, a pandemia perdeu fôlego. No último dia 15, a
Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou pela segunda vez neste ano queda no
número de novos casos de covid-19 no mundo.
As mortes pela doença estão reduzindo. É verdade que já
vivemos outros períodos de trégua do vírus, seguidos de surtos ainda piores.
Até agora, a doença já matou cerca de 6 milhões de pessoas no mundo e
contaminou aproximadamente 430 milhões. Mas em nenhum momento, desde que a OMS
decretou a pandemia, em março de 2020, o planeta reuniu três condições capazes
de acelerar o fim de tragédias sanitárias causadas por vírus como agora: a
vacinação em massa, um vírus menos letal em comparação com outras variantes e a
grande quantidade de pessoas que se imunizaram naturalmente, por terem contraído
a doença.
Assim como outros vírus respiratórios, o coronavírus
provavelmente buscará o equilíbrio entre letalidade e sobrevivência. “O vírus
só consegue se multiplicar se ele estiver dentro de um organismo vivo”, explica
a infectologista Patrícia Rady Muller. “Não é a intenção do vírus sair matando
todo mundo, senão ele não vai ter como se multiplicar e sobreviver.” Logo,
variantes com alto poder de infecção se tornam dominantes, mas com baixa
capacidade de provocar doenças graves e mortes.
“A alta transmissibilidade faz com que a Ômicron circule com
muita rapidez entre suscetíveis, infectando num curto período grande parte da
população”, explica José Eduardo Levi, virologista e coordenador de pesquisa da
Dasa, uma das maiores redes de saúde integrada do Brasil. “O que também leva à
queda rápida pelo esgotamento de suscetíveis e torna a maior parte da população
imune.”
O médico Christopher Murray, especialista em métricas da
saúde da Universidade de Washington, nos Estados Unidos, escreveu em artigo,
publicado no mês passado, na revista científica The Lancet: “O nível de
infecções sem precedentes sugere que mais da metade da população mundial terá
sido contaminada pela Ômicron entre novembro de 2021 e março de 2022”.
Somado a isso, já foram aplicados mais de 10 bilhões de
injeções anticovid no mundo. Apesar de as vacinas não serem 100% eficazes para
evitar contaminações pelo coronavírus, estudos mostram que pessoas vacinadas,
quando infectadas, têm menos chances de evoluir para casos graves e mortes.
“Embora a Ômicron seja mais competente, tanto em escapar da resposta vacinal
quanto da imunidade pós-infecção, já que a taxa de reinfecção por essa variante
em quem já teve covid é alta, as vacinas têm evitado quadros mais graves também
pela Ômicron”, disse Levi.
A pandemia no Brasil
No final do ano passado, o surgimento da Ômicron causou uma
nova onda de pessimismo global. No Brasil, não foi diferente. As festas de
réveillon foram canceladas, governantes recuaram em aliviar medidas como uso de
máscaras, o trabalho remoto foi reativado e alguns gestores, como o governador
de São de Paulo, João Doria, se apressaram em anunciar doses extras de vacinas
para a população.
Um novo déjà vu pandêmico
se instalou no país. As manchetes voltaram a repercutir recordes de
contaminações, alta nas internações hospitalares, a curva de mortes aumentou.
De fato, a nova variante impactou o ritmo da crise sanitária no Brasil. Mas os
números mostram que o solavanco provocado pela Ômicron, como antecipou
reportagem da Revista Oeste, foi bem menos intenso quando comparado com outros
períodos da pandemia, e está em desaceleração.
Cenário atual de
casos e mortes por covid-19
No Brasil, assim como em outros países em que a Ômicron
aterrissou, o número de casos de covid-19 explodiu. Em 3 de fevereiro, o país
registrou recorde de infecções: quase 300 mil em um único dia. No entanto, a
média móvel de casos, que elimina distorções entre dias úteis e fim de semana,
ficou em pouco mais de 90 mil na última quinta-feira, 24, abaixo de 100 mil
pela terceira vez desde 19 de janeiro. A redução da taxa ocorre desde 6 de
fevereiro, o que também já começa a refletir na diminuição das mortes. O número
total de contaminados pelo coronavírus é de pouco mais de 28,5 milhões de
brasileiros até agora.
Enquanto boa parte do mundo se despede das restrições
impostas por autoridades em razão do coronavírus, o Brasil resiste
Contudo, diferente do que se viu no início de 2021, o índice
de mortes não aumentou na mesma proporção que os casos dispararam. A média
móvel de mortes registrou queda pelo quarto dia consecutivo, chegando a quase
800, menor número desde 7 de fevereiro. No entanto, levando em consideração o
pico da pandemia, em abril do ano passado, quando mais de 3,1 mil pessoas
morreram em um único dia, houve redução de cerca de 75% das mortes,
considerando a média móvel para sete dias.
A maquiagem das
estatísticas
No período mais trágico da pandemia no Brasil, a ocupação de
leitos de UTI destinados ao tratamento da covid-19 no Estado de São Paulo
chegou perto de 90%, segundo dados da Seade, fundação vinculada à Secretaria de
Governo do Estado. Em 7 de abril de 2021, havia cerca de 13 mil pacientes
internados para pouco mais de 14 mil vagas.
Ainda no ano passado, quando a pandemia perdeu força, os
hospitais reduziram a quantidade de leitos destinados exclusivamente para
pacientes com covid-19. Por exemplo, no Estado de São Paulo, a disponibilidade
de leitos de UTI covid caiu de 14 mil para menos de 5 mil (redução de quase
três vezes).
Nesta semana, em 24 de fevereiro, quase 2,5 mil pacientes
ocupavam leitos de UTI covid. No entanto, o governo do Estado registrava lotação
acima de 50%. Se a quantidade de UTIs destinadas à covid-19 fosse a mesma de 7
de abril de 2021, a ocupação atual não chegaria a 20%.
Considerando as mais de 14 mil vagas de UTI reservadas em
abril do ano passado para pacientes com covid-19, mesmo em 3 de fevereiro —
momento de maior pressão no sistema de saúde depois do surgimento da Ômicron
até agora —, a lotação teria ficado abaixo de 30%.
Na vanguarda do
atraso
Enquanto boa parte do mundo se despede das restrições
impostas por autoridades em razão do coronavírus, o Brasil resiste.
Por aqui, os gestores não dispensaram o acessório mais
simbólico desta pandemia: as máscaras. Elas continuam por toda parte. São
usadas ao ar livre, em alguns casos até dentro de piscinas. Máscaras (às vezes
duas) cobrem o rosto em academias, parques, na chegada de restaurantes e festas
(sentado pode tirar).
O uso do equipamento, mais do que evitar a contaminação pelo
coronavírus, virou gesto político e ato de resistência.
Nesta semana, o Fórum Nacional de Governadores se reuniu
para avaliar a flexibilização do uso de máscaras no país a partir de março. O
grupo pediu uma análise ao comitê científico para formular um cronograma de
transição de medidas restritivas relacionadas à covid.
Outro ponto em que o Brasil patina em relação às nações
desenvolvidas é o debate transparente sobre a vacinação infantil. Embora o
Ministério da Saúde tenha deixado claro que a vacinação de crianças não é
obrigatória, os Estados têm obrigado indiretamente a imunização de menores de
12 anos, sob ameaça de denunciar os pais que optarem por não imunizar seus
filhos ao Conselho Tutelar. Para completar o combo do atraso, ainda discutimos
a imposição do passaporte sanitário, quando países da Europa já entenderam que
a vacinação não impede a transmissão e quem opta por não se vacinar não
representa um risco para a humanidade.
O retorno à vida como era antes está mais perto do que
nunca. O Brasil não pode ficar para trás.