31 dezembro, 2016

Tempo que foge!

* Ricardo Gondim

Contei meus anos e descobri que terei menos tempo para viver daqui para frente do que já vivi até agora. Sinto-me como aquele menino que ganhou uma bacia de jabuticabas. As primeiras, ele chupou displicente, mas percebendo que faltam poucas, rói o caroço.

Já não tenho tempo para lidar com mediocridades. Não quero estar em reuniões onde desfilam egos inflados. Não tolero gabolices. Inquieto-me com invejosos tentando destruir quem eles admiram, cobiçando seus lugares, talentos e sorte.

Já não tenho tempo para projetos megalomaníacos. Não participarei de conferências que estabelecem prazos fixos para reverter a miséria do mundo. Não vou mais a workshops onde se ensina como converter milhões usando uma fórmula de poucos pontos. Não quero que me convidem para eventos de um fim-de-semana com a proposta de abalar o milênio.

Já não tenho tempo para reuniões intermináveis para discutir estatutos, normas, procedimentos parlamentares e regimentos internos. Não gosto de assembléias ordinárias em que as organizações procuram se proteger e perpetuar através de infindáveis detalhes organizacionais.

Já não tenho tempo para administrar melindres de pessoas, que apesar da idade cronológica, são imaturos. Não quero ver os ponteiros do relógio avançando em reuniões de "confrontação", onde "tiramos fatos à limpo". Detesto fazer acareação de desafetos que brigaram pelo majestoso cargo de secretário do coral.

Já não tenho tempo para debater vírgulas, detalhes gramaticais sutis, ou sobre as diferentes traduções da Bíblia. Não quero ficar explicando porque gosto da Nova Versão Internacional das Escrituras, só porque há um grupo que a considera herética. Minha resposta será curta e delicada: – Gosto, e ponto final! Lembrei-me agora de Mário de Andrade que afirmou: "As pessoas não debatem conteúdos, apenas os rótulos". Meu tempo tornou-se escasso para debater rótulos.

Já não tenho tempo para ficar dando explicação aos medianos se estou ou não perdendo a fé, porque admiro a poesia do Chico Buarque e do Vinicius de Moraes; a voz da Maria Bethânia; os livros de Machado de Assis, Thomas Mann, Ernest Hemingway e José Lins do Rego.

Sem muitas jabuticabas na bacia, quero viver ao lado de gente humana, muito humana; que sabe rir de seus tropeços, não se encanta com triunfos, não se considera eleita para a "última hora"; não foge de sua mortalidade, defende a dignidade dos marginalizados, e deseja andar humildemente com Deus. Caminhar perto dessas pessoas nunca será perda de tempo.

Soli Deo Gloria.

* Ricardo Gondim Rodrigues é teólogo brasileiro, presidente nacional da Igreja Betesda, presidente do Instituto Cristão de Estudos Contemporâneos, conferencista. Tem programa de rádio e é colunista de vários veículos de comunicação. http://www.ricardogondim.com.br/poemas/1401/

09 dezembro, 2016

O Brasil é um monstro que nos engole todos os dias

"Você talvez tenha mais chance de escapar da ferocidade nacional se for um mico-leão-dourado, uma ararinha-azul ou uma baleia jubarte."

Por Mario Sabino*
Dois turistas italianos entraram numa favela carioca e um deles foi executado por traficantes. Levou um tiro na cabeça e outro no braço. Ambos viajavam de motocicleta pela América do Sul. Ainda está nebuloso se foram parar na favela por engano, guiados pelo aplicativo Waze, ou se à procura de uma peça de moto. Não importa.

Recentemente, Marcelo Crivella, prefeito eleito do Rio de Janeiro, disse que pretendia ressarcir turistas roubados na cidade. Pode-se ressarcir alguém por um celular, uma carteira, uma bolsa — mas como ressarcir por uma vida?

A vida é um valor inestimável, sim, mas no Brasil não tem valor nenhum. Seja a de brasileiros ou estrangeiros. Repiso que somos o líder mundial em homicídios. São quase 60 mil por ano. Você talvez tenha mais chance de escapar da ferocidade nacional se for um mico-leão-dourado, uma ararinha-azul ou uma baleia jubarte.

Nada contra os bichos. O Brasil, contudo, precisa criar também a proteção ecológica de seres humanos decentes. Os únicos da espécie que contam com medidas protetivas eficazes, de vida e patrimônio, são os bandidos de colarinho branco.

Ao escrever “seres humanos”, veio-me à cabeça um texto de Paulo Mendes Campos, de quem tive a honra de ser amigo, ainda que no finalzinho da sua vida. Em 1969, ele escreveu:

“Imaginemos um ser humano monstruoso que tivesse a metade da cabeça tomada por um tumor, mas o cérebro funcionando bem; um pulmão sadio, o outro comido pela tísica; um braço ressequido, o outro vigoroso; uma orelha lesada, a outra perfeita; o estômago em ótimas condições, o intestino carcomido de vermes… Esse monstro é o Brasil."
Os turistas italianos foram engolidos por esse monstro. Nós somos engolidos por esse monstro todos os dias.

* Mario Sabino jornalista e escritor. Foi redator-chefe da revista Veja até o final de 2011, e atualmente escreve em O Antagonista.